2 de fev. de 2013

TEXTO DE OUTROS TEMPOS . . .

Revendo mensagens antigas encontrei o texto de 2004 que me agrada reproduzir aqui no blogger:

 

Porquinho da Índia

Silva Costa

Hélio, velho pedreiro e residente aqui do morro, ajudou a construir minha casa em 1980 e, ainda hoje, a cada segunda-feira, vem pela manhã saber se há alguma coisa a ser consertada e acabou vindo em meu socorro para tirar o pó que vem se acumulando no atelier há anos.

Essa é uma tarefa difícil devido ao exagerado número de mesas, prateleiras, gavetas e os deixados-por-aí que ocupam, em incrível variedade, todas as existentes superfícies planas, prateleiras, gavetas, armários, e até frestas e pregos das paredes.

Tenho na sala uma placa de rua - Rua Pinto de Azevedo - retirada da zona de meretrício durante a construção da "cidade nova", hoje sede da Prefeitura, e que me foi presenteada. - Para você se lembrar do lugar onde nasceu - ria o amigo que a trouxe e que, na época, era figura importante no Estado da Guanabara.

Voltando à limpeza, é uma tarefa difícil devido a minha rabugice e irritação ao procurar algo que "estava aqui…tenho certeza…quem mandou tirar daqui?" e que acontece quando alguém tenta arrumar uma oficina ou atelier.

Tarefa difícil pois há quadros inacabados, tinta ainda fresca, gabaritos e esboços presos com alfinetes, e molduras brancas que ficam sujas ao serem tocadas por mãos e dedos pouco cuidadosos.

Tarefa difícil devido a livros que, uma vez arejados e

desempoeirados, são colocados em ordem que ninguém mais encontra. Alguns com o título na lombada de cabeça para baixo, coisa irritante para quem não gosta que lhe mexam nos livros.

Pois bem, essa limpeza toda acontece por conta de ordens de uma filha atenta que, cuidando da saúde deste pai, tenta arrumar a vida, por ordem nas coisas.

Limpeza no salão, revestimento no colchão e travesseiros contra ácaros, deixar as janelas abertas para arejar e evitar o mofo, jogar fora os papéis, cartas e documentos que não são consultados há mais de tantos anos.

Comida correta e nada de exageros. E aí é que está! Só lembramos com real prazer das diabruras, dos exageros dos comes-e-bebes, das mulheres que nos conquistaram após nos assombrar e atormentar, dos quase-morri que fizemos de porre e dos surpreendentes velhos amigos e amigas feitos em roda de bar e nunca em missas dominicais.

E mais, nada de guardar máquinas e ferramentas, nem pedaços de madeiras que, apesar de serem de árvores "extintas", só servem para entulhar. Nem guardar os discos de vinil que já foram copiados, nem pequenos items comprados em feiras livres e lojas do interior, comprados para celebrar passeios descuidados e antigas namoradas. Para quê guardar este lampião para pescar camarão que se usava há 50 anos em Cabo Frio? E essas bolas de gude?

E a coisa vai piorando se deixada. Acabarei ouvindo que a casa é muito grande e que o certo e correto é mudar para um pequeno apartamento que não dá trabalho.

Isso é o mesmo que transformar alguém em porquinho-da-índia.

Um homem que teve a incrível felicidade de morar em casas quase toda sua vida; aprecia o conforto de não ter vizinhos que sapateiam no teto nem vizinhos que reclamam do taco dos seus sapatos.

Um alguém que aprecia ter um pátio onde o sol é seu somente e a chuva é bem-vinda ao molhar a erva-cidreira e as samambaias.

Alguém que aprecia o espaço amplo e generoso e janelas em paredes opostas que, quando abertas, parecem trazer vida nova libertando o ar.

Alguém que aprecia o espaço amplo onde cabe uma espichada cadeira de balanço ou uma escrivaninha que foi do avô, cheia de pequenas gavetas que guardam algumas lembranças e um sizudo e barrigudo mata-borrão.

Fico pensando como é trágico ir morar numa caixa sem memórias, sem passado, sem os cheiros de água-de-colônia, de violetas e de sáis-de-amônia; talvez até sem espaço para aquela roda onde malha, correndo desesperado sem sair do lugar, e fingindo ser feliz, o solitário porquinho-da-índia.

 

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XXXXXX  Rio 2 FEVEREIRO 2013  XXXXXX

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SILVA COSTA - Pintor, nascido em São Paulo, Brasil, em 1927. Morou e estudou no Rio de Janeiro até 1949 quando viajou para os EEUU. Estudou desenho e pintura no Institute of Mechanics and Tradesmen em Nova Iorque, mudando-se em 1950 para a California, Carmel-by-The-Sea onde trabalhou e estudou desenho e pintura. Trabalhou na Army Language School na vizinha cidade de Monterey e estudou técnicas do retrato com Warshowski. Em 1955 viajou para a Europa onde estudou, na Academie de La Grande Chaumiere, em Paris por alguns meses.